domingo, 3 de setembro de 2017

Retrato 3x4 de uma amizade 6x9


Resolvi pular o resto da nossa primeira passagem por Paris (haverá mais uma) para contar sobre a nossa passagem por Arreau, sul da França.

O título deste post, muitíssimo apropriado, foi plagiado do gênio Millôr Fernandes, que fazia Retratos 3x4 de Amigos 6x9. Se quiser ter ideia da genialidade do cabra é só ler o que ele escreveu sobre a Fernanda Montenegro.

A nossa vinda para a Europa tem dois objetivos, ambos celebrações: ter me livrado do câncer e o casamento do Pierre e da Lorena. E o objetivo determinante da viagem foi o casamento, porque já estava programada a nossa vinda antes do meu encontro com a multiplicação desordenada de células.

"Como assim cê fala, tio? Atravessaste o Atlântico para ir a um casório???"

Pois é, foi. Cá estou em Arreau, nos Pirineus franceses, às 5:30 da matina do dia 3/9/17, escrevendo sobre este evento.

Pierre e Lore são amigos daqueles mais que especiais. Pierre foi nosso primeiro hóspede no Couchsurfing, que é uma rede social de compartilhamento de hospedagem. Por essa rede, quando vc viaja, se candidata a hóspede de alguém na cidade destino. Se a pessoa, ao ler o seu convite, analisar o seu perfil achar que vc merece, ela te recebe por uns dias, normalmente não mais que uns três. A única regra é: não se deve cobrar nada do hóspede.

Mika (Michael), que gentilmente nos hospeda em Paris, foi nosso segundo hóspede.

Quando o Pierre se candidatou o perfil dele no CS (para os íntimos) era super malfeito. É que ele ficou sabendo do CS no dia anterior à partida, durante a festa de despedida dele cá na França, e criou o perfil naquele estado. Uma foto horrível, sem nenhuma referência ou dados pessoais que dissessem algo a respeito dele. Nem mesmo que falava inglês ele colocou, então quando eu quis aceitá-lo como hóspede o site avisou: mas vcs nem falam um idioma comum! Se fosse hoje, depois de ter hospedado uns mais de 30, provavelmente daria uma desculpa e não o aceitaria como hóspede, mas como eu estava ansioso para entrar na brincadeira, aceitei. Imaginei que não era possível que um engenheiro viesse estudar no ITA só falando francês. Estava sozinho em Sanja, mas consultei à patroa, que assentiu.

Pierre vinha estudar como parte de um intercâmbio entre a universidade de Toulouse , onde ele cursava engenharia aeronáutica, e o ITA. Foi o primeiro aluno desse programa, ou seja, tudo era novidade de todo lado... como ele é de origem portuguesa, falava até um pouquinho de nossa língua, mas a comunicação no início era em inglês mesmo.

Quando ele chegou ficou encantado com nossa casa. Logo disse a ele que, quando a patroa chegasse, ficaria melhor. Quando ela chegou eles se apaixonaram um pelo outro, e a hospedagem do Pierre que era para durar 3 dias se estendeu por um mês.

Ajudado pela Bete, conseguiu uma república com o Mika e a Mariana, que também se juntou ao time.

E a Lorena entrou na vida dele também através do CS.

Pierre é um líder nato, e em torno dele começou a se formar uma turma de gente muito legal. Além disso é um sujeito "mui guapo", como vcs podem ver na foto acima, o que facilitou ainda mais a aproximação de jovens joseenses e de outros países que por lá viviam.

Já a Lore... basta dizer que QUALQUER história que vc já tenha vivido, que seja a sua maior experiência de vida, não conte para a Lore. Ela terá uma história que ela tenha vivido mais divertida, mais perigosa, mais interessante do que a sua! A energia dela é infinita: lembro dela em casa, num churrasco,bebendo cerveja, conversando com os adultos, jogando um jogo de tabuleiro com a criançada e revisando um paper do Pierre em inglês, tudo ao mesmo tempo. Quando vínhamos pra casa no fim das festas apostava corrida conosco, ela de bike e a gente de carro, quem chegaria primeiro em casa. Frequentemente ganhava, graças aos atalhos malucos que descobria. Jogadora de futebol, era escalada por três times femininos da região e recebia salário por isso. De vez em quando batia uma bola com o time masculino do São José. Nos Jogos do INPE, onde estudava, se inscrevia em tudo que é modalidade, de pólo aquático a corrida.

Aí juntaram-se os dois e a vida virou uma festa. Todo fim de semana era viagem, acampamento, churrasco, competição esportiva, nada cansa esses dois. Tiveram que mudar de ap porque não aguentavam mais pagar tanta multa por causa do barulho das farras. Foram então para uma casa enorme com outras pessoas, com área de churrasqueira e tals. Imaginem a bagunça... a gente ia nas festas e vinha embora antes da coisa pegar fogo de vez. Aí no outro dia a gente voltava só para escutar as histórias...

Arrumaram um vira lata, o Toddinho. Um dia, aparecem eles com uma foto do cachorro apavorado, solto em cima da Pedra do Baú! Lorena o havia colocado na mochila (e olhem que não era exatamente um poodle, quando muito cabia meio Toddinho dentro) e escalado a Pedra.

Em torno deles continuava a aparecer gente interessante. Dani, alemã, com menos de trinta tinha dois cursos superiores, vivido em uns cinco países (fora os que visitara) e dentre as línguas que fala está o indonésio. Corredora, correu meia-maratona em cima da Muralha da China: "Mauro, eu querer correr otrrro metade, mas chinês não deixar passar..."

Sou também testemunha do bem que a convivência com eles fez aos jovens brasileiros que os conheceram. Vivemos num país gigante e monoglota, o que faz com que achemos que viajar a outros países é difícil, caro e não é importante. Após a convivência com P & L vários deles se puseram a viajar Brasil e mundo afora.

Conheceram o Brasil como poucos brasileiros. De carona, usando o CS, tinham uma barraca que só armavam se chovesse, senão o sono era sob as estrelas mesmo, afinal de contas ela, o pai e os irmãos viajaram a Europa dormindo no carro quando frio e nas praças quando o clima permitia. Também bateram perna América Latina afuera.

O cuidado, o carinho deles conosco por todo esse período foi especial. Quando eu viajava a trabalho, eles iam lá pra casa fazer companhia a D Bete. Pierre aprendeu a cozinhar quando resolveu vir ao Brasil, já que sabia iria ser cobrado, como francês, pelos seus dotes culinários. De vez em quando iam cozinhar em casa: chegavam com as compras, Pierre preparava o jantar (com a cozinha fechada, não admitia ajuda) a gente ficava bebendo na sala. Eles arrumavam a mesa, nós comíamos, eles arrumavam a cozinha e iam embora. Às vezes sexta à noite, a turma toda no crime e eles iam lá pra casa, ficar conosco, pelo prazer mútuo da companhia.

Como a Lorena era doutoranda, Pierre pediu e foi aceito no programa de mestrado do INPE. Um ano antes de irem embora, resolveram que teriam um filho brasileiro, assim reforçariam os laços com o Brasil e ganhariam a cidadania.

Como no caso dos dois nada é muito no padrão, um dia eles organizaram um jantar prá nós. Lore disse que tinha uma notícia e o Pierre outra. Ela: "estou grávida", ele: "e são dois!".

Difícil foi segurar a notícia enquanto se passavam os três meses "regulamentares"...

Dia do parto, Lore e Pierre no mesmo hospital: ela parindo, ele com dengue. Sendo Lore a Lore, claro, parto normal. Ginecologistas acorreram à Santa Casa para ver o parto natural de gêmeas, e assim vieram ao mundo Annika e Amélie. Bete foi a primeira visita, acompanhou a estadia no hospital e foi quem buscou a família e os levou até em casa.

Como já estava na hora da mudança de volta à Europa, tinham que ajeitar a casa para devolvê-la. Assim, mudaram-se lá pra casa de mala, criançada e cuia, ficando um mês até que chegasse o dia do voo. Foi sintomático que o último dia, assim como o primeiro do Pierre no Brasil fosse em nossa casa.

Desde que programaram o casório estava estabelecido que viríamos. Quando fui atropelado pela notícia do câncer, a viagem, claro, subiu no telhado, e quando o tratamento se complicou e atrasou, desceu do outro lado.

Mas aí as coisas passaram a funcionar, me recuperei rápido, achamos uma grana meio perdida numa conta da CEF, o Temeroso agraciou-nos com a liberação de FGTS passados, aí pensamos: por que não? Aí... cá estamos.

Estou agora escrevendo da casa deles. Pra vcs terem uma ideia, tem uma espécie de varal perto do chão com diversas fotos nossas juntos, para que as meninas vissem e se acostumassem conosco. Funcionou muito não, porque era muita gente, muita festa e elas estavam bem tímidas. Mas vejam essa parte do discurso da cerimônia do casório (se entendem um poquito de Español ou a petit peu du Français): 



Agora me digam: é ou não é uma amizade maior que o Atlântico???

PS: a foto lá de cima fui eu que tirei, sem que posassem.

7 comentários:

Rafhael disse... [Responder comentário]

Oh loco Mauraum, câncer? Onde?

Mauro Assis disse... [Responder comentário]
Este comentário foi removido pelo autor.
Mauro Assis disse... [Responder comentário]

@Rafhael

Rafa, na base da língua. Foi um senhor perrengue, cirurgia, quimioterapia e radioterapia, UTI... mas é passado, que é o importante!

Unknown disse... [Responder comentário]

Adoro seus relatos. Q maravilha, quem tem a benção da amizade de vcs tem uma família, bem sei disso. Aproveitem muito essa viagem, vcs são merecedores. Amo vcs. Bjs

Mauro Assis disse... [Responder comentário]

@Unknown

Que bom que vc gostou, mas como não assinaste, não sei a quem agradecer... ;)

Cantinho disse... [Responder comentário]

A foto retratou um casal lindo, jovem e cheio de energia, exatamente como você descreveu. Amo o jeito como detalha suas histórias e como você consegue apreciar as pequenas coisas da vida. Você é um exemplo para mim. Assim como esse casal me inspirou... ê mundão, caba não!

Mauro Assis disse... [Responder comentário]

@Roberta Cantinho

Robertita, realmente Pierre & Lore foram um presente pra mim, como foram na vida de muitos cá em Sanja e certamente serão para quem os conhecer no futuro. O filho da Katy, babá das meninas, gosta de aviões. Ela disse: "Quem sabe ele não vai estudar no Brasil, mora na casa de vcs e conhece por lá uma Lore?"